sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Artigo: Gravidez indesejada

"De um momento para outro, a campanha para Presidente da República trouxe à tona, com indisfarçável caráter plebiscitário, a inquietante pergunta: você é a favor ou contra o aborto? Naturalmente, à falta de um debate mais profundo sobre esse complexo tema, as respostas foram ambíguas. Em meio ao fervor religioso no qual o assunto foi atirado, deixou-se de fazer a pergunta pelo ângulo que de fato interessa às mulheres (a quem o assunto diz respeito mais diretamente) e toda a sociedade. Qual seja: como evitar uma gravidez indesejada? Qual a política de saúde pública o (a) candidato (a) vai imprimir para evitar os abortamentos de gestações não desejadas?

Este é o ponto.

Há algum tempo foi exibido , no circuito de cinema cult de São Paulo, o excelente e didático filme romeno "4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias" , que expõe de forma dramática os danos causados pelo Estado em especial às mulheres, quando razões ideológicas - ou supostamente morais - tentam se sobrepor às razões de saúde pública. Até os anos 80, a Romênia socialista reconhecia a prática do aborto e prestava assistência médica regular às mulheres, até que, repentinamente, a pretexto de retomar o crescimento vegetativo, relegou ao sexo feminino o ancestral papel de mero procriador e transformou o assunto em caso de polícia, proibindo-o. Não é de estranhar que a reação das romenas fosse acorrer às clínicas clandestinas de aborto, mesmo pagando um tributo altíssimo de vidas. Só diante dessa tragédia é que o governo recuou, liberando o aborto novamente a partir dos anos 90.

Emblemático, esse exemplo mostra que, legal ou ilegal, a prática ocorre quando a gravidez não é desejada pela mulher. É a única arma de que ela dispõe, aqui e alhures, ante a violência praticada pelo sexo oposto, no caso do estupro, ou mesmo pela própria natureza, que não lhe oferece outra saída que não seja a concepção. Isto vale para qualquer sociedade que penaliza o abortamento pura e simplesmente, sem oferecer uma alternativa diante de uma gravidez indesejada.

Se as perguntas aos candidatos tivessem se voltado para as políticas públicas que cada um deles pensasse em  adotar nesses casos, provavelmente o aborto deixaria os emotivos palanques e receberia o tratamento e fóruns adequados para discussão.

Sua abordagem é complexa e obviamente não se presta a interpretações apressadas, sobretudo em um país como o nosso. No Brasil, o Código Penal de 1940 criminaliza o aborto e determina penalidades severas tanto para a mulher que o pratica como para o médico ou qualquer pessoa que facilite esse crime. A exceção são os casos de estupro, risco de vida da mãe e anencefalia do feto, com aval da Justiça.

Estatísticas da Organização Mundial de Saúde (OMS) apontam a ocorrência de 55 milhões de abortos anualmente em todo o mundo, sendo 6 milhões na América Latina e 3 milhões no Brasil - a metade de todo o continente. Ou seja, expõem uma burla sistemática na legislação vigente, envolvendo, além das próprias gestantes, médicos aventureiros, farsantes ou curandeiros, não importa. Importa é que milhões de vidas são rotineiramente submetidas a um risco que poderia ser evitado. As consequências derivadas dos abortos clandestinos é a terceira causa da mortalidade de mulheres em nosso país.

É imperioso pensar, repensar e discutir a questão com racionalidade e - por que não? - uma boa dose de tolerância, pois qual valor daremos ao sofrimento de tantas e tantas mulheres que, por diversas razões, têm de se submeter à degradante circunstância da ilegalidade do aborto, com todos os seus riscos e efeitos de ordem física e moral? Que educação sexual o Estado oferece, quais métodos contraceptivos mais efetivos podem ser disponibilizados para evitar a gravidez indesejada, quais as campanhas e de que forma elas podem ser realizadas em uma sociedade com profundo senso religioso a ser considerado?

Estas perguntas reclamam resposta. Oferecer a uma nova geração mulheres educação de qualidade e democratizar o acesso a métodos contraceptivos para enfrentar o problema da gravidez indesejada é necessário e urgente; ao mesmo tempo, não se deve impor, pela via Penal, um padrão de conduta baseado em valores religiosos - pessoais e inabaláveis, sim, mas que dizem respeito a cada indivíduo - para jogar na vala comum da marginalidade milhões de mulheres que arriscam a própria vida em nome da liberdade de escolher".


O artigo "Gravidez indesejada" é de autoria da secretária-geral adjunta do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Márcia Regina Machado Melaré.

Fonte: oab.org.br

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