sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Quando a palavra da mulher não basta: o retrocesso da PL 5069/2013 e a vida das mulheres

DireitoAoNossoCorpo* Por Clarissa Nunes
A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou hoje o Projeto de Lei n. 5069/2013 de autoria do Deputado Eduardo Cunha. Dentro da proposta há a criminalização com um a três anos de detenção para qualquer pessoa que instigue, induza ou auxilie um aborto – com agravamento caso o agente seja profissional de saúde. Atualmente essas condutas são tidas como contravenções penais e passíveis de pena de multa. Além disso, o texto do projeto em questão inclui a exigência de constatação em exame de corpo de delito do estupro cometido contra a mulher que queira abortar. Isto porque a legislação brasileira protege a legalidade do aborto em caso de gravidez derivada da violência sexual. Ou seja, além do constrangimento de ter o seu corpo e sua sexualidade violentada pelo estuprador e disso resultar uma gravidez, a mulher ainda deverá ser constrangida a comprovar a ocorrência da violência com um exame invasivo e obrigatório. O próprio Estado estará violentando, novamente, um corpo já vitimado pelas atrocidades do patriarcado e da cultura de estupro impregnada na sociedade brasileira.
Em razão de tal cultura e das maldades ocasionadas pela sua aplicação, a palavra da mulher não basta. Seja para ser ouvida ao dizer “não” para um ato sexual, seja para ser ouvida e acreditada quando contar ter sido vítima de um estupro. Hoje a Comissão de Constituição e Justiça legitima, novamente, a violência contra a mulher. Legitima, novamente, a inexistência de poder das mulheres sobre seus próprios corpos e retira a já fragmentada escolha sobre suas próprias vidas. A justificativa usada para a necessidade do exame de corpo de delito é a “prevenção das provas e punição dos agressores”. O que, no entanto, os senhores deputados não sabem (ou sabem, mas preferem esquecer) é que o processo criminal que visa a punição do estuprador (exceto em caso da vítima ser menor de dezoito anos ou vulnerável e nos casos de resultado com lesão grave ou morte) se procede mediante ação penal pública condicionada – ou seja, é necessário que a vítima represente perante a autoridade competente a sua vontade de que o Estado persiga e puna judicialmente o seu violentador. Contudo, em razão do constrangimento desse tipo de violência – e inclusive pelo fato de o maior índice de estupradores serem homens próximos as mulheres violentadas – nem todas as vítimas decidem pela persecução penal. Nesse sentido, a justificativa além de falha, denota a falta de escrúpulos dos trinta e sete parlamentares que votaram a favor do Projeto de Lei, já que o objetivo de forçar o exame abrange apenas o interesse da manutenção do silêncio das mulheres e coação de carregarem dentro dos seus corpos uma gravidez forçada através da violência. O intuito é de dificultar o acesso ao aborto legal. Quer dizer: Dificultar ainda mais, já que muitas mulheres – por falta de informação – desconhecem o direito a interrupção da gravidez nos casos previstos em lei.
O texto ainda expõe que as alterações normativas pretendem “dotar o sistema jurídica pátrio de mecanismos mais efetivos para refrear a prática do aborto, que vem sendo perpetrada sob os auspícios de artimanhas jurídicas, em desrespeito da vontade amplamente majoritária do povo brasileiro”, além disso um parágrafo do Projeto de Lei destaca que “nenhum profissional de saúde ou instituição, em nenhum caso, poderá ser obrigado a aconselhar, receitar ou administrar procedimento ou medicamento que considere abortivo”. É importante se deixar claro: caso aprovado de maneira definitiva, o texto legal não irá refrear a prática do aborto – seja pelo fato da prática existir mesmo com a penalização da conduta, seja pela já óbvia conclusão, em cenário internacional, de que a repressão não resulta em diminuição de delitos.
Caso aprovado, o Projeto de Lei matará mais mulheres. Um Projeto de Lei de autoria de um homem e de relatoria de outro homem que querem legislar sobre o direito dos nossos corpos e o direito de fazermos as nossas escolhas. É nesse viés que prevalece, ainda mais, a luta por representação feminina dentro dos campos políticos. É nesse sentido que se revela, com ainda mais clareza, a necessidade de uma reforma política no nosso País. Por mais mulheres na política. Por mais mulheres vivas. Seguiremos em marcha até que todas sejamos livres!

*Clarissa é advogada e militante do Núcleo Soledad Barrett da Marcha Mundial das Mulheres de Recife

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